PUBLICIDADE

Don L reinventa o rap nacional em “CARO Vapor II”

Don L não lança álbuns, ele inaugura ideias. Cada projeto assinado por ele carrega o peso de uma urgência histórica e a ambição de uma obra definitiva. CARO Vapor II – qual a forma de pagamento?, lançado doze anos após a primeira parte, não é só a continuação de um clássico do rap nacional. É […]

Don L

Don L não lança álbuns, ele inaugura ideias. Cada projeto assinado por ele carrega o peso de uma urgência histórica e a ambição de uma obra definitiva. CARO Vapor II – qual a forma de pagamento?, lançado doze anos após a primeira parte, não é só a continuação de um clássico do rap nacional. É um movimento cultural profundo que amplia os contornos da música brasileira contemporânea, imaginando o país a partir de sua própria memória, rejeitando referências coloniais e projetando utopias em meio à distopia.

O disco é, acima de tudo, um manifesto contra a mesmice sonora e contra o esvaziamento do sonho. Em vez de buscar na gringa as batidas que embalam o mundo, Don L mergulha na riqueza esquecida da nossa própria história musical. Ele se pergunta como soariam hoje os gênios do samba, do baião, do bossa-jazz — e responde com um álbum que cria novas possibilidades a partir do legado de Belchior, Dorival Caymmi, Jorge Ben, do funk carioca, da bossa jazz e da malandragem dos becos nordestinos. O resultado é um som inclassificável: brasileiro até o osso, mas absolutamente original.

“Hoje, eu consigo fazer o que tinha vontade no começo da carreira. Eu sou um artista com talento excepcional, mas sempre subinvestido”, afirma em papo com o TMDQA!. Don L não esconde o tamanho de sua ambição, nem a consciência de que sua régua nunca esteve no lugar comum.

“Eu poderia ser acomodado e fazer o mesmo disco sempre, mas eu gasto mais dinheiro a cada novo projeto e coloco o sarrafo mais alto. O que eu fiz e o que eu faço é menor do que tenho capacidade de fazer.”

Reverência ao passado

A inquietação está presente em cada faixa do novo álbum. Se no primeiro CARO Vapor ele refletia sobre viver rápido e morrer bem, nesta segunda parte ele questiona os custos de permanecer vivo — e lúcido — em meio a uma distopia digital. A crítica, no entanto, não vem em forma de panfleto. Don L não se vê como um rapper consciente, e rejeita o rótulo:

“Eu acho chato esse tipo de rap e eu fico puto quando me chamam de rapper consciente. Não é o que eu faço. Eu quero criar uma trilha sonora da vida.”

Mas a trilha sonora que ele constrói não é qualquer uma. CARO Vapor II soa como uma odisseia sonora que parte do samba jazz e se expande até as ruínas de uma utopia esquecida da música brasileira. Para chegar a esse resultado, o rapper não rompe com hábitos, nem mergulha no passado – ele apenas recorre à memória criada a partir dos discos de vinil comprados em busca de samples.

“Eu sempre consumi música brasileira. Devido ao meu histórico na produção, eu sempre pensei em sample, comprei muito disco de vinil, sem falar que eu tinha acesso na minha cidade às músicas que os mais velhos ouviam, músicas que eram populares na periferia de onde eu vim. Agora criar algo mais influenciado por essa musicalidade nacional e menos estrangeira é consequência de ser dominado por essa energia, além do fato de eu não me identificar mais com o que acontece na gringa. O rap de fora perdeu a energia contestadora. Ele apenas aborda uma solução de vida escapista, como se o dinheiro fosse a única solução”.

Essa escolha mais brasileira não nasce de um nacionalismo oco, mas de um desejo de resgate e transformação. Don L reflete o Brasil em múltiplas camadas e entende a música como um território a ser reconstruído. Nesse processo, ele contesta o domínio cultural americano, não apenas por sua arrogância imperial, mas pela forma como esvaziou o rap de sua vocação revolucionária.

Ao incorporar suas influências de forma profunda, e não apenas como enfeite, Don L cria uma nova camada no uso de samples. Eles não são mais fontes primárias para loops ou atmosferas nostálgicas, mas elementos orgânicos dentro de uma proposta estética autoral.

“Nesse disco, quis reverenciar os artistas sampleados, usando a alusão a uma era da música brasileira onde os artistas tinham a ambição de sonhar com um outro Brasil. Muitas vezes parece um sample, mas não é. Muitas vezes tem a vibe de um bossa jazz, mas eu estou criando outra coisa.”

Don L como contraponto

A crítica social, presente em todas as suas obras, aparece aqui de forma ainda mais sofisticada. Don L filosofa sobre como o capitalismo não só regula nossas ações, mas invade até os nossos sonhos.

“É impossível não se influenciar pelo capitalismo. Porém, a gente encontra formas de vivência para além da sobrevivência. O capital tem poder sobre o nosso tempo livre, já que a gente usa o celular como lazer e enriquecemos alguma big tech. Isso interfere totalmente na nossa forma de sonhar e agir.”

Ele entende sua obra como contraponto – não à cultura urbana, mas à preguiça criativa. Quando muitos rappers falam de política como checklist, Don L propõe novas formas de existir politicamente na arte. Quando a maioria canta sobre superação individual, ele pergunta quanto dos seus sonhos era publicidade. E tudo isso sem abrir mão do “molho”.

“Eu acho massa o que o Public Enemy fazia, que era um rap político, mas tinha swag. Os Panteras Negras também eram foda no discurso, mas também andavam na estica e faziam você querer fazer parte deles. Isso ajuda a seduzir as pessoas para o seu lado político.”

Para alcançar esse nível de entrega, Don L investe mais do que dinheiro – investe vida. Ele não quer apenas lançar bons discos, mas viver experiências que os tornem possíveis.

“A música é minha vida. Eu tenho essa ambição de realizar as coisas que quero, então invisto 90% do que tenho em estúdio, em equipamentos para tirar a sonoridade que quero, mas também invisto em viver para ter uma vida interessante.”

CARO Vapor II é, portanto, um tratado poético sobre o Brasil e o Sul Global, um exercício de utopia e memória, um álbum feito para durar enquanto o mundo tenta nos fazer esquecer. Em tempos de repetição, Don L oferece invenção. E em tempos de algoritmos que nos empurram para o mesmo lugar, ele volta para nos mostrar que o Brasil, com toda sua contradição e beleza, ainda pode ser um ponto de partida.



Fonte

Leia mais

Radar Musical | Portal de Notícias